FELONÍA E RISA CONSONTE A ANTROPÓLOGA GODINHO  

FELONÍA E RISA CONSONTE A ANTROPÓLOGA GODINHO  

Portada do felo-texto da antropóloga lusa Paula Godinho, Amastra-N-Gallar, 2012

O 14 de novembro de 2012 enviounos Emilio Araúxo un “vibrante” felo-texto da antropóloga e profesora portuguesa Paula Godinho [que recentemente ingresou na Academia de Ciencias Sociais do Couto Mixto]. Conformaban 19 páxinas abondo salientábeis en clave nosa dende unha ollada diferente. O título orixinal era “Da felonía – Apontamentos sobre a risa e o entroido de Maceda”. No primeiro parágrafo podemos ler: “Olho para esta foto, e para esta, e para a outra. São felos do concello de Maceda, na provincia galega de Ourense, fotografados por mim, pelo António Monteiro Cardoso, pelo Emilio Araúxo no Entroido de 2012”.

Felos de Maceda na planicie de Tioira. Foto: Emilio Araúxo, 2012. Amastra-N-Gallar

Na altura do Entroido de 2015, o xornal O Sil, na súa edición dixital, penduraba ese traballo sintetizado pola propia antropóloga baixo o título: “Algumas notas sobre felos e felonia – rir e comemorar o entroido em Maceda”. Mesmo aportaba que Paula Godinho estaba vinculada ao Departamento de Antropologia e Instituto de História Contemporânea, Facultade de Ciências Sociais  e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Fotos de Paula Godinho e Antonio Monteiro Cardoso, Entroido 2012. Amastra-N-Gallar

Eis o texto compendiado:

“Tioira é numa imensa planura, de milho e vacas, com a serra de S. Mamede em fundo. É esta a terra dos felos, em Maceda, que chegam com as suas máscaras, o fato elegante e um ar de troça provocador. Acodem em grupo, vêm em família, porque as mulheres e as crianças já podem envergar o fato dourado e elegante. Sigo-os pelas ruas da aldeia, enquanto o dia vai desaparecendo e o frio aumenta. Param no «Lar dos Felos», comem empanada e filloas, bebem. Tiram então as máscaras, que deixam alinhadas com outras idênticas, variando só o animal da serra representado. Restabelecidos do esforço, depois de correr à desfilada pelos «pobos», agitando os chocalhos, partem com a máscara do riso sobre as caras jubilosas, no esforço a que o ritmo da festa retira o cansaço. Num mimetismo de situação, o riso da máscara convoca o nosso.

O riso é uma expressão da visão do mundo e da cultura das camadas populares, estando associado a inúmeras festas europeias do ciclo de Inverno, com ritos e cultos cómicos, com personagens como os bobos e os bufões, os gigantes e anões, os monstros e os palhaços. No Entroido de Maceda mandam os felos. Ali feminiza-se o acto de rir: a risa, que ri na máscara, com o descaramento desarmante de uma meia-lua de dentes alvos. Retirada a máscara que ri, riem as mulheres, riem os moços e os mais velhos, com a barrigada alegre da festa, o riso inquieto e depois farto, partilhado, duradouro.

Felonia é sinónimo de engano e rebelião. Está associada à obstinação dos fracos, à aleivosia contra os senhores, à renitência à dominação, protagonizada pelo felo, que ri sempre, dentro e fora do fato, elegante por paródia dos poderosos. A cultura popular é rebelde em defesa dos costumes e com uma vida melhor em mira. Resiste tão activamente como pode e tão passivamente como deve, em função dos momentos e das forças que consegue conjugar. No tempo longo de seis mil anos da agricultura, acompanhando um calendário lunar e solar, cujo ritmo dos trabalhos e das festas foi gerido pelo cristianismo nos últimos dois mil anos, os felos, com o riso espaventoso, a boca desenhada em meia-lua, aproveitaram as gretas do tempo para irromper, subvertendo um estado de coisas, pondo em guarda os que representam o mando.

Os poderosos não gostam do riso nem do Entroido, porque se sabem ridícularizados na ironia mordente, na fanfarronada alegre, na sátira grotesca. A risa foi sempre temida, também na sua remissão para o baixo-ventre dos insultos e do sexo. Os poderes religiosos e civis, emparelhados num idêntico desígnio, quiseram regulamentá-la, pois a sua transgressão era temível. Quanto mais tremendo foi o poder, mais espessas se tornaram as máscaras – mas continuaram a rir. Há por aqui registo da revolta dos servos, em irmandade, contra as duras taxas, os impostos, as rendas. Rebelaram-se contra os tributos e dízimos que longamente oneraram os galegos, que os fizeram emigrar, deslocando-se a pé para terras de Castela, para as margens do Douro português, ou para mais longe.

Resistiram num tempo longo os de Maceda. Põem a máscara e são felos, gente de felonia. O objecto do riso é alvo de humilhação, de assuada social. Por isso, os ditadores não gostam dele, nem de festas com o povo jubiloso nas ruas. Muito menos toleram as máscaras, porque sabem que atrás do seu poder, doseu triste, guardado e solitário poder, são ridículos e que os povos o sabem – e riem deles. Depois do golpe de Julho de 1936, o Carnaval foi o primeiro feriado retirado do calendário por Franco nas zonas que foram ocupadas, logo no início de Fevereiro de 1937.

O Entroido galego era temível, pela crítica social, o meneio erótico a incentivar ao gozo e a uma existência vivida com gosto, as máscaras que riam. Antes mesmo de eliminar o dia que celebrava a República, Franco baniu o riso do Entrudo. O medo do ridículo mandava mais que o ditador. Maceda foi uma das muitas terras galegas que resistiu ao avanço dos golpistas, com a sua população e os carrilanos. Tragicamente reprimidos, foram alvo de represálias e de tentativas de aniquilamento. Os franquistas tornaram o medo viscoso, entrou pelas casas e pelas vidas, remeteu o riso para o domínio oculto. Já não na rua, mas dentro de casa, sabiam que o riso era uma arma. E riam, no recato doméstico, entre si, nos grupos sólidos em que a confiança era possível, à espera do momento em que se tornasse possível reconquistar o espaço da rua para o riso.

No Entroido de Maceda, os felos circulam hoje pelas aldeias, provocam e riem, no júbilo alegre de provém dum tempo longo, de uma sociedade agrícola que interrompia o tempo da produção para a festa e para a transgressão. Agora, já à distância, depois de ter corrido com os felos, e quando ainda oiço retinir os seus chocalhos, parece-me detectar quatro fases no seu riso: o riso constante de uma sociedade rural; o riso desalentado pelo franquismo e a emigração; o riso crítico, da cidadania que se reconstrói no final da ditadura; o riso patrimonial, paradoxalmente a emergir numa sociedade que vai sendo empobrecida pelas práticas dos que a governam.

Porém, nesta última etapa, em Maceda pouco se destina aos de fora, já que a exportação de segmentos festivos não anulou a fruição local e os vizinhos de Maceda continuam a rir no seu Entroido, divertindo-se com as suas máscaras. Regressam de longe para as vestir e circular, agitando os seus chocalhos, nos dias que dura a festa. Riem em grupo, cúmplices, cientes de que possuem uma espécie de idioma social comum, cuja comicidade pode ser intraduzível para os de fora. Por vezes, convém que seja; essa conivência reforça o grupo e acrescenta as razões para o riso. Temos de aprender com a felonia, neste tempo em que tudo parece efémero, periclitante, perigoso”. PAULA GODINHO

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